segunda-feira, maio 01, 2006

ADAPTAÇÃO OU REPRODUÇÃO?


Há muito tempo atrás nem gastávamos tempo pensando em qualidade de adaptação de quadrinhos no cinema por saber que a condição sine qua non é que qualquer tentativa resulta em lixo, atentados contra o bom senso, dinheiro jogado fora ou algo do tipo e, nesta linha, não mereciam maior preocupação. Só que, de tempos para cá, não sei se por só recentemente terem desenvolvido efeitos especiais adequados, ou se devido ao amadurecimento dos roteiros dos quadrinhos, ou por simples crise criativa, a enxurrada de adaptações é impressionante. Ao invés da certeza de um resultado risível de antes, passamos então a ter outra preocupação: se aquilo que é adaptado está à altura do original impresso.

É um caso diferente do que acontece com os livros - mídia adaptada desde sempre - pois por mais paixão que possam criar, não é equiparada à paixão da legião - ou religião - dos seguidores de quadrinhos. Estes são bem mais xiitas e normalmente não aceitam alterações nas condições iniciais das obras - condições que nem sempre são cartesianas e que estão intimamente vinculadas ao "tipo" de história.

O mundo dos comics se divide em dois momentos bem distintos na sua forma de composição de narrativa e construção de roteiros. Antes e depois das Graphic Novels. Antes, tudo era bem mais despretensioso e as estórias eram seqüenciais com um personagem central, assim como os personagens clássicos de DC e Marvel. Depois, obras como Watchmen e V de Vingança nos apresentaram contextos diferenciados, com começo, meio, fim e uma (ou mais) idéias sólidas que precisavam ser passadas. Tivemos séries mais longas como Sandman e quetais, com arcos fechados, mas com publicações bem mais numerosas. A tendência não poderia parar por aí e a necessidade de dar corpo e cenários de gente grande chegou aos super heróis que também ganharam Graphic Novels. A diferença entre estes últimos e as obras de "Alan Moores" e "Neil Gaimans" da vida é que a característica fechada de suas obras os deixa protegidos contra o tempo, pelo menos no meio editorial. Os personagens clássicos não. Estes tiveram seus conceitos formados muito antes, lá quando ainda eram bem inocentes e sua criação admitia liberdades que o tempo ataca sem dó. As revisões a cada década são inevitáveis e, se no caso de Watchmen tudo é muito rígido e concreto, o passado conturbado de um Homem Aranha, por exemplo, deixa sua base meio flexível, coloidal, com pontas soltas e necessidades perenes de atualização com o mundo real.

Estes elementos nos definem então características bem claras e separadas quando surge a intenção de adaptação de um personagem clássico ou de uma Graphic Novel. No primeiro caso o roteirista se depara com aquela sopa de entulho que é o passado da personagem; quarenta anos de background - vários retcons em alguns casos - o deixa bem à vontade para brincar com o roteiro da adaptação. Basicamente, sua preocupação deve se resumir a encontrar o vilão com melhor empatia com público, escolher entre a fase infantilóide ou a adulta da personagem, garantir a existência de alguns elementos clássicos do passado e a única amarra existente e da qual não tem como fugir são as características mais básicas da constituição do arquétipo. Mesmo assim, eventualmente temos casos em que os dias de hoje impõem algumas alterações que, se quem assite não for um radical purista, serão bem vindas. Caso dos lançadores de teia do Peter e do Batmóvel de Batman Begins, por exemplo.

Seguindo esta cartilha, fica difícil dar algo errado. Avaliando a opinião pública, tivemos quatro fracassos claros de adaptações desta natureza, o que só aconteceu por não respeitaram o roteiro predefinido. Elektra, Demolidor, Hulk e Mulher Gato atiraram longe do alvo esperado pelo público (eu, particularmente, gostei da visão do Hulk por Ang Lee) e fracassaram.

Há então a outra linha de adaptações, aquelas que muita gente nem sabe que trata-se de algo baseado em quadrinhos. As principais são Estrada da Perdição, From Hell, Marcas da Violência, A Liga Extraordinária, Sin City e V de Vingança (nem vou mencionar Guardiões da Noite adaptando a Casta dos Meta-Barões... aquilo nem deveria existir). Os três primeiros não possuem tantos fãs quanto os três últimos, o que os tirou muito da avaliação comparativa do público e praticamente os conferiu status de filmes de roteiro adaptado, não necessariamente de HQ. Já as três últimas, crias de papas da 9ª arte, certamente colocaram a cara a tapa.

A Liga Extraordinária nem merece muitas palavras, pois errou tudo o que se propôs e fez a fúria de Alan Moore surgir com força, algo que já tinha dado seus primeiros sinais com sua desaprovação de From Hell. Sin City é um caso à parte. Não sei se posso considerá-lo uma adaptação, já que a linguagem é completamente diferente dos cinemas. É mais como se alguém tivesse preenchido os "delta t's" entre cada quadrinho da revista com os movimentos restantes dos personagens. Então, qual desenho animado, teria filmado os quadros em seqüência. Claro que gostei do resultado, até porque foi co-dirigido pelo próprio criador, mas as estórias eram curtas, sem maiores detalhes, até mesmo rasas - altamente "filmáveis", portanto.

Vem agora a obra que me fez escrever este post. V de Vingança. À época do lançamento do filme o Doggma postou sua visão no Black Zombie e a Dani oservou que, no seu ponto de vista, as adaptações de quadrinhos não recebem o devido respeito no cinema; são torcidas e retorcidas como bem entenderem os estúdios. Concordo com ela em uma série de casos, mas não em V. A revista original é a antítese de Sin City no que tange ao conteúdo. É denso, pesado. Se torcer a brochura escorrem idéias, contextos, mensagens. Como já dito, é uma obra fechada, mas escrita há mais de 20 anos e trata de uma sociedade futurista em relação à da época. Apesar da idéia ainda ser super atual, e sou daqueles que viu como algo decente transposição da essência da revista para as telas, alguns elementos satélites envelheceram e precisaram ser revistos. Neste caso, salvo alguns pontos (a tensão amorosa entre V e Evey, por exemplo), algumas alterações, desde que mantenham a essência, são necessária, benéficas e atualizam a obra.

Em breve teremos 300 de Esparta. Vem sendo tocado na mesma batida de Sin City, sendo que tem como base um cenário histórico pregresso, o que elimina a necessidade de revisões de elementos (por mais que Miller tenha errado na descrição de uma série de atributos da época). Entretanto, uma outra bíblia vem tendo sua adaptação povoando a teia de possibilidades da indústria cinematográfica. Watchmen. Assim como V, é prenhe de seguidores. Assim como V, é denso, pesado e explode em mensagens. Who watches de watchmen? é uma citação a Quis custodiet ipsos custodes? (Quem guarda os guardiões?) das sátiras de Juvenal (século II) e sua essência é tão atual quanto nossa sociedade insiste em mantê-la. Certamente haverá elementos cujas adaptações, tantos anos após, precisarão ser revistas para melhor ambientação e identificação com os dias atuais.
Pergunto: Em casos como este, onde a mensagem é extremamente importante, os elementos satélites podem ser readaptados para atualização da obra ou esta deve permanecer intacta? Se a revisão for para melhoria da ambientação em outra mídia e para outro público, isto constitui depreciação da obra original?

Ass.: Fivo


Adaptações... essa não. Questão passível de várias abordagens e nenhuma de fácil resolução, pois inclui-se aí o velho "probleminha" do gosto pessoal. Costumo sempre adotar o critério do Bom Senso nestes casos (superpoder que, entre outras coisas, confere a habilidade de ouvir John Coltrane no mesmo playlist em que constam Cannibal Corpse, Edith Piaf e Bezerra da Silva) - ou seja: informe-se antes, procure saber do que se trata e o mais importante... você pode até gostar de algo que seja uma merda, contanto que você saiba que é uma merda. Pronto, vá ser feliz.

Respondendo à pergunta, sim, eu acho absolutamente necessário que haja um cuidadoso trabalho de atualização. É uma forma até mesmo de preservar a importância da informação contida no texto original. É óbvio que há uma maior fluidez quando as analogias se encontram dentro de um contexto reconhecível para o observador. O caso de V é sintomático: é muito mais fácil entender uma referência a George W. Bush e seu protecionismo extremo do que a austeridade totalitária de Margareth Thatcher (até porquê, W. Bush é uma atualização viva de Thatcher, rs). Tirando os eventuais deslizes mainstream citados pelo Fivo, o filme conseguiu transpor o espírito do material com inequívoca competência (nota elogiosa extra: o que poderia ter feito dessa adaptação uma grande bomba, foi justamente o gol de placa - criticar a política predatória dos U.S.A. sendo que a narrativa se manteve no U.K.). Mas sempre existem os fãs ortodoxos, que não ligam se a história se passa num momento político já arquivado em nossa memória (ou na dos nossos pais, avós, etc). Assim como a inspiração era a Guerra Fria e seu futuro mais provável na época (os "futuros" também mudam!), V poderia se passar num futuro pós-Tratado de Versalhes, pós-Projeto Manhattan, pós-Crise de Cuba ou pós-Seleção do Telê Santana. Para os fãs xiitas isto não importa. Eles vão querer uma transcrição literal imutável, mesmo que não seja nada interessante para as novas gerações, ou que seja para ajustar o target contestador da obra para um cenário mais atual, colocando-o de encontro com os problemas de agora (antes que me esqueça, estes problemas também são atualizações dos velhos problemas). Chega a ser quase um serviço de utilidade pública.

A Liga: o diretor Stephen Norrington não agüentou o tranco que é dirigir Sean Connery. Explico. Certa vez, Alfred Hitchcock, para se defender do boato de que ele declarou que "atores são como gado", mandou esta: "Eu não disse que os atores são gado. O que eu disse foi: 'atores deveriam ser tratados como gado'". Quando perguntaram a James Stewart (amigo e ator de vários filmes do mestre) o que achava disso, ele falou: "Então ele é o melhor vaqueiro que eu já vi!" Ainda hoje isto se aplica. Independente da concepção original de A Liga ter sido ou não válida como adaptação de qualidade, o que prevaleceu foi a voz de Connery. O veterano ator mudou falas, cenas e até se aventurou pela sala de edição. E duvido muito que ele tenha lido a obra de Alan Moore. O resultado, claro, foi o pior possível. Pena, pois a premissa é riquíssima (personagens literários ganhando vida!) e a produção foi esmerada.

Quanto à natureza de uma adaptação, me valho da opinião do próprio Moore, que é contra releituras de suas obras, pois estas "são tão somente histórias em quadrinhos e foram concebidas como tal". Concordo pra poder discordar. Adaptações têm sim seu valor artístico, pois a possibilidade de crossover existe em todas as formas de Arte, e, em maior grau, nas não-"clássicas", como Cinema e Quadrinhos. Ao mesmo tempo (e sedimentando o pensamento do Moore), uma adaptação não tem a capacidade de transpor toda a informação contida no original. Dessa forma, jamais - repito: jamais - se poderia exigir fidelidade total. No máximo, que o espírito e a mensagem sejam preservados. Qualquer outro tipo de exigência não passa de utopia, e imagino que muitos por aí até hoje sonham com um longa de 120 horas adaptando O Senhor dos Anéis na íntegra.

Dito isto, podem me adicionar na lista-gama: somos 4 a gostar da adaptação de Hulk por Ang Lee. Por sinal, a estréia do Verdão nas telonas é uma das mais emblemáticas no escopo desse nosso debate. É o exemplo perfeito. O público cinéfilo pode até ter uma certa afinidade com o universo dos quadrinhos, mas a imensa maioria sequer imagina quem é James Howlett, p.ex. (ao passo que quase todo mundo conhece o Wolverine - isso é mais ou menos o padrão por aí afora). No caso do Gigante Esmeralda, calhou de o personagem ficar soterrado sob toneladas de referências defasadíssimas (o seriado dos anos 70) e de conceitos tão superficiais que beiram a total falta de conhecimento (ex.: "o Hulk é tão forte que é capaz de derrubar uma parede de concreto"). 90% dos espectadores nem imaginava que ele derrubaria essa parede com um cuspe. O diretor Ang Lee e os roteiristas James Schamus, Michael France e John Turman, foram tão fiéis aos quadrinhos quanto possível. E atualíssimos à cronologia! Durante décadas, o personagem só era um-cara-que-virava-monstro-quando-ficava-com-raiva, Mr. Hyde + Monstro de Frankenstein, travado. Só na fase Peter David, no final dos anos 90, é que ele ganhou contornos mais intrincados. Abuso infantil, psique reprimida e desordem de múltipla personalidade entraram com tudo dentro do contexto, tornando-o um dos personagens mais complexos e trágicos das HQs. Embora ricas, eram temáticas difíceis por natureza, pesadonas, pouco comerciais - e entraram no filme, quase que heroicamente. Como se não bastasse, a câmera contemplativa de Lee ainda faz links entre a evolução natural e o resultado final de uma evolução forçada artificialmente, em momentos tão sutis quanto um close em um fungo crescendo num pedaço de madeira.

Excetuando o descontrole do roteiro na relação pai/filho na reta final, Hulk foi um filme extremamente necessário para conferir, em uma primeira instância, a tão almejada credibilidade conceitual ao personagem (o Graal de qualquer roteiro que preste). Daqui em diante, já tá liberado: que venha a porrada!

Ass.: dogg


Resisti muito à tarefa/vontade/desafio de falar sobre a questão das adaptações em meus textos, mas agora que colocaram o tema pra jogo, não tem como evitar. Particularmente em V de Vingança, que gerou uma polêmica até então inédita na recente onda das adaptações de HQ (o que chegou mais perto disso foi justamente o incompreendido Hulk). Tendo a pergunta do Fivo como parâmetro (e ela é bem mais complicada do que pode parecer à primeira vista), é importante falar um pouco dos casos citados, pra mostrar que tem muita gente confundindo coelhos com laranjas (as duas imagens que ilustram o post são um bom exemplo disso).

Uma coisa que já falei lá no EQF na época do lançamento de Batman Begins, é que muita gente se confunde já no termo "adaptação de HQ", achando que isso é um gênero. NÃO É! Uma HQ, assim como um livro ou um filme, pode se enquadrar em diversos gêneros. Existe uma "escola" específica conhecida como "HQ de super-herói", predominante nos EUA, motivo pelo qual costumamos encaixar o termo comics nesse gênero (o que não é problema em textos não-específicos). As HQs de super-herói formam o grosso das adaptações por serem um excelente pretexto para o uso dos efeitos especiais mais recentes e pelo potencial de atrair multidões ao cinema (Homem-Aranha que o diga!), inclusive gerando o "filme de super-herói", que nem sempre é uma adaptação e que não está atrelado a nenhum gênero (temos Unbreakable como drama e My Super Ex-Girlfriend, o novo de Uma Thurman, como comédia, por exemplo), embora quase sempre fique no terreno da aventura/ação. Acompanharam até aqui? Beleza.

Dito isso, o que é uma adaptação? Pra que ela serve? Uma adaptação pega uma parte dos elementos de uma determinada obra cultural e transpõe para outra, fazendo as mudanças que os responsáveis por essa transposição acharem adequadas. Daí já podemos concluir que Sin City não é uma adaptação, como já declarou o próprio diretor, mas uma transcrição. A diferença entre as obras é a materialidade e a linguagem de cada meio (mesmo na linguagem, entretanto, não há muita diferença, pois a obra de Miller é assumidamente cinematográfica e Rodríguez fez o possível pra "congelar" os momentos-chave da obra. O único "trauma" perceptível da transposição é o som.). Adaptações passam pelo inevitável processo de cortar ou adicionar elementos para se adequar ao projeto do adaptador. Esse é um dado importante. Já a finalidade da adaptação é fazer dinheiro, diria um cínico, e ele não estaria errado. Mas podemos ser menos materialistas e dizer que o objetivo principal é possibilitar a fruição, em outro veículo cultural, de uma obra que apresentou, em seu veículo original, méritos que mereçam esse esforço de transposição. A adaptação seria então um reconhecimento à qualidade da obra original e, pode-se até dizer, uma homenagem. Esse é outro dado a se destacar.

A regra geral é dizer que a adaptação boa é a que mantém a essência do personagem/história original. Costumo evitar o uso da palavra essência, uma típica palavra cercada por significados e teorias muitas vezes contraditórios (outro exemplo é a onipresente palavra revolução). A essência aqui seria o básico, elemento necessário, sem o qual aquele personagem/história deixaria de ser ele mesmo e viraria outra coisa (engraçado que uma adaptação já é necessariamente outra coisa!). Podemos falar que o essencial é a base conceitual, mas aí vemos que isso não é tão fácil de se definir. Qual é o conceito do Batman? O herói que não mata? Então o personagem de Bob Kane, que matava sem remorso, não poderia ser chamado de Batman. Temos hoje a imagem do Batman milleriano como padrão, mas ele é apenas uma das possibilidades do personagem (o álbum Os Piores do Mundo e o crossover do morcego com o Planetary ilustram bem essa questão). Essa imagem é mais ou menos verdadeira que o Batman de Kane ou o justiceiro colorido do seriado dos anos 60? Se alguém que nunca leu os quadrinhos do personagem (como Joel Schumacher) nem viu o desenho da Liga da Justiça visse o seriado e depois visse Batman e Robin, não diria que é uma boa adaptação (não um bom filme, aí já é outra história), visto que a essência do personagem é "um homem com fantasia colorida que combate criminosos também coloridos num ambiente camp"? O que quero dizer é que a essência depende do referencial e super-heróis possuem vários. O que vai definir se um personagem foi bem ou mal adaptado é se as características que cada um de nós julga importantes foram mantidas ou não. Ouvi/li muita gente dizendo que "gostou" de X-Men, mas sentiu falta dos uniformes coloridos que "eram a essência dos personagens" (isso é mais comum entre os que conheceram os personagens através do desenho animado dos anos 90 e suas cores jimleerianas).

E no caso de V? Qual é o conceito dele? Será que dá pra manter uma "essência" dele em uma adaptação? Sinceramente, acho que não numa adaptação cinematográfica, talvez em uma adaptação literária. Isso porque V não é um personagem facilmente definível, mas sim um amontoado de personas em um único personagem. O próprio Moore declarou que o personagem conseguiu a proeza de concentrar várias de suas idéias que até então pareciam impossíveis de amalgamar (pra efeito de comparação, pensemos no Flash, que é simplesmente "o super-herói mais rápido do mundo" ou na definição clássica da DC em apenas quatro palavras: the fastest man alive). Um personagem tão complexo precisa ser simplificado pra funcionar no cinema. Se todas as suas facetas fossem mostradas em duas horas, veríamos um sério caso de múltipla personalidade, não um personagem coerente. Algo teve que ser cortado, algo teve que ser mudado. Ele virou outra coisa. Se essa representação faz justiça ao original ou não, é um julgamento pessoal que cada pessoa faz. Mas dizer que era possível ver o V original em duas horas de filme me parece algo muito ingênuo (ingenuidade inadequada em fãs tão ardorosos da obra de Moore) ou, mais provável, puro radicalismo de fanboy (ou "fã ortodoxo", segundo o eufemismo do Doggma. Quem disse que não existe fanboy culto?).

O caso das adaptações do personagem Noturno é emblemático desse processo de simplificação. O personagem original tem a aparência de um elfo (não-tolkeniano) misturado com um demônio (inclusive com cauda), possui poder de teleporte que o faz surgir como um demônio conjurado (com direito a enxofre e tudo), entretanto é um católico praticante, entretanto (2) é um sujeito galanteador e mulherengo (o que já lhe rendeu muitos problemas), trapezista de circo, exímio espadachim, fã de Errol Flynn. Possui iniciativa e liderança, mas pensa sempre no grupo, o que faz com que só tenha sido líder em equipes com ausência ou crise de liderança. Um personagem fascinante, grande parte mérito dos bons tempos do Claremont. Pois em X2, ele era uma figura extremamente religiosa, com aparência demoníaca, que sofria por essa combinação irônica. Em X-Men: Evolution, ele tem a aparência élfica (furry) oculta por um indutor de imagens (artefato que já existia nos quadrinhos, mas perfeito até o nome na analogia com a questão da aparência na adolescência) que permite que ele se sinta à vontade entre outros adolescentes, sendo inclusive o piadista paquerador dentro do seu grupo de amigos e elemento cômico da série. Em comum, os personagens possuem somente a agilidade e o poder de teleporte. Qual deles possui a "essência" do Noturno original? Os dois? Nenhum? O todo sem a parte não é todo? Depende do que você considera importante no personagem. É a tal "credibilidade conceitual" que o Doggma citou. Particularmente, gosto das duas versões, ainda mais pelo fato de ambas funcionarem muito bem nas suas respectivas obras.

Voltando ao aspecto da finalidade de uma adaptação, se ela se justifica pelos méritos da obra original, ela deve procurar valorizar esses créditos na nova obra. É o que Ang Lee fez em Hulk (sim, estranhamente [ou não] os três vigias gostaram do filme do verdão). Sobre esse filme, especificamente, o Doggma já explicou como ele escapou de ser um sub-godzilla nas mãos de um Michael Bay da vida. Acrescento somente que tenho a forte convicção de que o final que desandou teve influência do estúdio (a Universal, dos "filmes de monstro" e "filmes-catátrofe"), resultando em confronto físico o que deveria ser um embate psicológico. É só notar como durante todo o filme o pai velho, de aparência adoentada e andar meio corcunda tem uma presença muito mais assustadora/ameaçadora que o filho, força da natureza temperada por trauma de infância. Em um filme, muito mais do que em uma HQ, dificilmente o resultado final resulta de uma visão autoral, mas de um projeto resultante de muitas forças (a exceção são criadores como o citado Hitchcock). Por isso lá em cima afirmei que cortes e adições são decorrentes de um projeto, não de uma visão.

No polêmico V de Vingança, os criadores (McTeigue e os Wachowski, basicamente) fazem exatamente o que se propõe a ser feito em uma adaptação: levam para outro veículo o que eles consideram ser os principais méritos da obra. No caso, o filme que eles fizeram declara que o que eles consideraram mais importante na obra é a idéia de que pessoas comuns podem se libertar de governos opressores. Que governo opressor é esse, que pessoas são essas ou como a libertação é feita não importam tanto. V não é o centro ("a essência") do filme, como também não é o da HQ (apesar de ser protagonista de ambos e ser elemento físico e simbólico de coesão dos elementos da HQ). A humanização (no sentido pejorativo) de V, da qual tantos reclamaram, faz parte do projeto de transformar uma obra erudita em filme hollywoodiano. V não é tão importante quanto a história que conta e a idéia que representa. Os criadores da adaptação perceberam isso e foram corajosos, tanto ao levar um tema espinhoso para o mainstream (de novo!) quanto ao tomar tais liberdades em relação ao original. Se o resultado é ou não um bom filme, aí cada espectador que se decida.

Ass.: JP